Os pais Carlos e Lucas compartilham nas redes sociais a rotina de alegrias e desafios com os três filhos
Segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento existem, atualmente, 4.220 crianças a espera de uma família no Brasil. Desde 2019, 13.749 crianças foram adotadas através do cadastro. O processo de adoção é gratuito e deve ser iniciado na Vara de Infância e Juventude mais próxima da residência de quem pretende se habilitar.
Muitas famílias encontram na adoção um caminho para se tonarem ainda mais completas. Foi assim que o “pai Carlos e pai Lucas”, como são chamados pelos filhos Kawã, Edgar e Ketlin, realizam o sonho da paternidade.
Carlos é pedagogo e Lucas professor de língua portuguesa, juntos desde 2009, os dois sempre compartilharam a vontade de aumentar a família:
“Sempre foi um desejo nosso, até mesmo antes de sermos um casal. Quando nos unimos o desejo se tornou mais real. Desde o início, foi tema de muitas conversas nossas, mas precisávamos de mais estabilidade financeira e uma rotina mais organizada. A adoção sempre foi o meio que tínhamos em mente para aumentarmos a nossa família”, explicou Carlos em entrevista ao Portal Costa do Sol.
Em janeiro de 2019 eles buscaram a Vara da Infância e Juventude do município de Araruama – RJ para conhecerem os procedimentos necessários para adoção.
“Ficamos sabendo que era necessário fazer um curso e deixamos os nossos nomes para contato assim que abrisse turma. Demos sorte e abriu turma no mês seguinte. Após o curso, entregamos os documentos exigidos e passamos pelas entrevistas com psicólogo e assistente social. Nossa habilitação foi finalizada em novembro do mesmo ano”, ressaltou.
Na fase de habilitação, o casal, optou inicialmente por duas crianças de 0 até 8 anos e entraram para a fila de espera. Porém foi através de um grupo de busca ativa, por whatsapp, que conheceram seus filhos.
“Nesse grupo de busca ativa, os habilitados tem acesso a algumas crianças que não possuem pretendentes. São crianças com algumas doenças, mais velhas ou, como no caso dos nossos filhos, grupo de irmãos”, explicou.
No grupo foram informados de um grupo de 3 irmãos de São Paulo, porém, pela distância resolveram não entrar em contato.
“Nesse dia, conversamos e dissemos que se aparecesse 3 crianças, mas do estado do Rio que seriam nossos filhos. Uma semana depois apareceu um grupo de irmãos exatamente como dissemos. Eram nossos filhos.”, destacou.
No primeiro momento não tinha muitas informações sobre as crianças, somente as iniciais e as idades. Na ocasião 5, 9 e 12 anos. Eles entraram em contato com os administradores do grupo que contataram a Vara da Infância e Juventude responsável pelos menores.
Durante os primeiros contatos com a Vara de Duque de Caxias, a equipe técnica foi bastante cautelosa, dando aos poucos as informações. Então o casal foi finalmente conhecer os filhos depois de 20 dias.
Depois de alguns encontros no abrigo, Carlos e Lucas puderam trazê-los para casa, em Araruama, com uma guarda provisória de 15 dias durante as férias de julho de 2019. Ao término desse prazo eles não voltaram mais para o abrigo e foi concedida a guarda para fins de adoção.
“Demos entrada no processo de adoção propriamente dito, todo o processo aconteceu por meio da defensoria pública, sem custo. E foi finalizada a adoção em novembro de 2021”, explicou.
No início da convivência os pais buscaram trazer o mundo das crianças para casa: “Fizemos um acamamento na sala durante uma semana. Deixamos eles ouvirem e falarem como estavam acostumados, para que pudéssemos entender as demandas e necessidades deles.”
Escola e aprendizado
Segundos os pais os desafios escolares foram muito grandes, pois as crianças não estavam alfabetizadas. Os dois mais velhos estavam no 3º ano do Fundamental e mais nova terminando o Pré.
“Nós dois como professores pegamos muito nessa questão. Eu peguei uma licença maternidade e fiquei mais tempo com eles com relação à escola. Tive que ensina-los durante dois anos, até que eles voltassem para a escola. Tínhamos um grande receio com relação à volta para escola. Conseguimos fazer com que eles entendessem textos e operações matemáticas, para que eles estivessem preparados”, ressaltou Carlos.
Transformações físicas e emocionais
Outro ponto que o casal destacou foi com relação à saúde física e emocional das crianças, que chegaram tomando medicações e dentro de três meses já não tinham mais necessidade.
“Entendemos que eram mais situações causadas de forma afetiva, pela falta da efetividade, falta da família, do que verdadeiramente algo físico. Fomos até os médicos, nos instruímos, e eles perceberam também que eles não precisavam mais da medicação, era uma questão emocional. É interessante ver como uma família faz diferença na vida das crianças e como a falta de uma família pode causar até mesmo doenças físicas e psicológicas”, destacou sobre a melhora da saúde.
Família Multirracial
Carlos e Lucas explicaram que foi um importante processo de aprendizado, junto com os filhos, para entender toda a riqueza e características da cultura negra. Quando chegaram, as crianças, não se reconheciam como negros. Nas primeiras informações recebidas pelo casal, eles estavam classificados como pardos na documentação.
“Nós nos imaginávamos como pessoas que estavam dentro de “bolhas”. Nos achávamos desconstruídos. Mas com a chegada deles, percebemos que na verdade, nossa bolha só era um pouco maior do que a da maioria das pessoas. Ainda tínhamos preconceitos e questões a serem trabalhadas, e ainda temos. A desconstrução do racismo estrutural não é feita de um dia para o outro, é complexo. Nós precisamos ir identificando e aprofundando as reflexões, desfazendo esses nós que um dia foram feitos.”
As crianças não tinha na época nenhum conhecimento racial e os pais precisaram aprender junto com eles a cada dia.
“Eles não se compreendiam, não se viam e até mesmo possuíam preconceitos em relação à questão racial. Começamos a mostrar mais personagens, figuras e elementos da africanidade para que eles então se compreendessem, se vissem e contemplassem a beleza do universo negro”, ressaltaram sobre o processo de reeducação.
A pequena Ketlin se desenhava com cores claras e cabelo liso e os meninos, Kawã e Edgar, não se viam como negros e sim morenos. Ketlin chamava o lápis de cor bege, de cor de pele. O tema foi inclusive sucesso em um vídeo, com dela, que viralizou nas redes sociais, falando sobre esse aspecto das cores de pele.
“É importante que todos nós brancos tenhamos a consciência que uma simples fala ou gesto pode dar manutenção a um racimo estrutural que não percebemos. Essa questão do lápis de cor é uma delas.”
Com muito cuidado, os pais, foram ensinando a importância de apreciarem a cultura da qual fazem parte a suas ancestralidades.
“Outro desafio foi com relação ao cabelo da Ketlin, ele já tinha vindo para nos alisado com química. Ela estava com o cabelo misturado, um pouco crespo e um pouco liso. Nós não sabíamos lidar com cabelo crespo. Tivemos que ir aprendendo sobre as curvaturas do cabelo, estudando sobre tranças. A estruturação do cabelo dela foi tomando forma. Tivemos que cortar a parte alisada e ir tratando com hidratação e óleos.”
Os poucos Ketlin foi gostando do cabelo natural “Black” e hoje ela ama o novo visual.
Preconceitos na rede e sociedade
Recentemente, por conta das eleições, a família passou por um episódio de preconceito ao postar um vídeo na orla da Lagoa e serem confundidos com moradores do Nordeste brasileiro.
“As pessoas começaram a nos julgar e falar que não éramos uma família. Principalmente com uma questão de xenofobia, que tem tudo haver com racismo. Teve gente falando “eu lembro bem de onde vocês são… aquelas pessoas que engraxavam os nossos sapatos, pessoas que limpavam o meu banheiro, que serviam nossa mesa e ficavam só olhando”, esse tipo de coisa bem absurda”, explicaram sobre os comentários nas redes sociais.
No ambiente escolar os irmãos também passaram por episódios, tendo sido chamados de “macacos”.
“Tem muitas questões que nós como brancos nunca tínhamos passado. Sei que nós também, em alguns momentos, por conta do racismo estrutural, tivemos falas preconceituosas, mas hoje em dia estamos muito mais conscientes.”
O racismo estrutural é a naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial.
“O mundo ainda está muito difícil, esta questão vai sendo superada, mas ainda existem muitas pessoas que ainda não entendem e que vivem como se fossem “superiores”. Nós temos que preparar nossos filhos pra isso. Temos que tratar quase que diariamente com o preconceito. Preparar nossos filhos para serem parados em blitz de policiais, coisa que eu, com 36 anos, nunca fui parado. São coisas que para alguns pode parecer “mimimi”, para outros frescura, mas para nós é a realidade.”
Com a visibilidade que a família ganhou através da conta no instagram “Pais de 3”, que possui hoje 77,9 mil seguidores, eles tem percebido que na internet as pessoas não medem palavras na hora de ofender, mesmo se tratando de um perfil de uma família, com três crianças.
Os dois pais também lidam com as questões de preconceito ligadas ao fato de serem um casal homoafetivo. Na escola ouviram de outra criança que ter dois pais “é feio”.
“Imagina para uma criança que tem dois pais e é feliz na família dela, que tem tudo que qualquer criança gostaria de ter, com relação ao amor, carinho, atenção, respeito, coisas que muitas vezes outras famílias não dão, ouvir que os pais delas são “feios”, por serem dois pais e não estar na Bíblia e tudo mais. É uma questão bem preconceituosa ”.
Desde que chegaram os irmãos sabiam que Carlos e Lucas eram casados e viviam juntos: “Em um determinado momento em nossas falas, em casa, quando dissemos ser um casal “gay”, essa palavra tinha um peso muito ruim para eles. Conversando entendemos que a palavra “gay” é tida, um tanto, como pejorativa, algo negativo para eles. Tudo bem nós sermos dois pais, dois homens que se amavam, mas não sermos gays. É interessante, pois mostra como o preconceito é criado e introduzido na vida das crianças de uma forma tão prejudicial, tão agressiva, que pode causar muitas questões traumáticas”.
Para quem sonha em adotar
A lição que os dois pais deixam para quem pretende adotar é que a adoção é um meio para a construção familiar e não um meio de se fazer caridade. Não confundam uma coisa com a outra.
“A adoção é um meio e não uma finalidade. Adotar porque acha que é um gesto bonito é estar fora de algo que se espera de alguém que quer adotar. Adoção é uma construção familiar, é você buscar um meio para formar sua família. Essa questão precisa ser bem entendida para que não caia na filantropia. Temos que entender que adoção tem seus desafios, não é um romance, mas também vai ter muitas coisas bonitas”.
Com relação ao poder público, o casal destacou que o mesmo poderia trabalhar mais a questão de conscientização sobre as múltiplas formações familiares.
“Tratar os assuntos que envolvem a adoção dentro das escolas e espaços públicos de educação.”
Redes Sociais
Com a divulgação da rotina e desafios diários nas redes sociais, os pais, tem o objetivo de enviar uma mensagem de amor, respeito, luta contra os preconceitos, mostrando que a família deles existe de fato.
“Esperamos que outras pessoas possam se inspirar através das nossas vidas, falas e vídeos. É possível ter uma família, é possível ter dois pais, uma mãe e um pai, ou duas mães, enfim qualquer pessoa pode construir a sua família, seja pela adoção ou de forma biológica. Todos possuem o direito de serem respeitados. Nossa mensagem é de amor e luta contra os preconceitos”.
O casal busca também romper com paradigmas e mostrar que os estereótipos que foram criados, ao longo do tempo, nem sempre representam a realidade da vida de um casal gay homoafetivo. Desmistificando também os preconceitos e estereótipos com relação à adoção tardia, mostrando que não é um problema.
Por Fernanda Guterres Santana
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Conheça mais da história dessa grande família no:
https://www.instagram.com/paisde3_/
Saiba mais sobre adoção:
Vocês são uma família que transborda amor! Que Deus abençoe vocês!