Maria Caú conta suas trajetórias na poesia e no audiovisual

Maria Castanho Caú foi a Niterói nascer e retornou a Araruama, onde cresceu e que visita com certa frequência. “Os anos formadores marcam a gente de uma maneira que nenhum outro período consegue”. Hoje com 38 anos, ela é especialista em conteúdo na Rede Globo.

Eu sempre caminhei entre o cinema e a literatura, e não é à toa que as pessoas dizem que há muito de cinema nos meus poemas. Fiz faculdade de Cinema na UFF e Mestrado e Doutorado em Ciência da Literatura, estudando as inter-relações entre o cinema e a literatura. Sou crítica, pesquisadora e professora de cinema, além de dar meus passinhos no roteiro – que para mim também é literatura. Estagiei na Globo muito novinha (com 22 anos) e acabei retornando à empresa através de um processo seletivo. Hoje trabalho na área de desenvolvimento e fomento de dramaturgia, da qual eu gosto bastante. De vez em quando eu imagino aquela menina que se perdia nas poucas locadoras de Araruama e dizia que queria estudar cinema (afirmação que as pessoas achavam meio absurda, até mesmo a minha família). Penso em como essa menina iria se espantar de ver onde estou hoje, mesmo que eu não ache que eu faço nada impressionante. De qualquer modo, é um privilégio poder trabalhar com o que nos empolga e nos move. Além disso, trabalhar com cultura no Brasil de hoje é certamente uma forma de resistência; todos nós, da poesia, das letras, do audiovisual, somos de alguma forma guerrilheiros.

Autora dos livros Olhar o mar: Woody Allem e Philip Roth – a exigência da morte (Editora Verve – 2015) e Dar corpo ao naufrágio (Editora Urutau – 2021), seu recém-lançado livro de poesia. E é sobre a poesia e seu poder transformador que nós vamos falar hoje.

Araruama, nem maior nem mais bela que as outras aldeias, é maior e mais bela que todas elas para mim.

Maria Caú
  • Como e quando surgiu o seu interesse pela poesia?

Meu interesse pela poesia está completamente entrelaçado com a figura do meu pai, que era antes de tudo um poeta. Para mim, meu pai, José Geraldo Caú, é a poesia encarnada. Como ele sempre foi a minha pessoa favorita no mundo, desde pequenininha, eu sempre me interessei por poesia porque eu sempre me interessei por tudo que circundava o meu pai. Meu amor por poesia não tem um início preciso porque é indissociável da figura do meu pai, e eu cresci com ele declamando poemas pela casa, poemas dele e poemas famosos. Foi até um espanto quando eu descobri que certos trechos não eram dele, mas do Drummond ou de Fernando Pessoa.

A poesia é capaz de ver profundidade em tudo

Maria Caú
  • A poesia se manifesta em diversas áreas como música, literatura, fotografia, pintura. O que ela representa pra você em especial?

A poesia é uma forma de olhar o mundo, uma espécie de lente. Uma maneira de dissecar o mundo, uma forma muito particular porque usa a palavra como instrumento primordial, mas trabalha com ritmo, musicalidade, criação de imagens não exatamente concretas, uma imagética muito particular. Eu escrevo poesia em primeiro lugar para elaborar sobre situações emocionalmente complexas, situações que eu não teria capacidade de descrever em prosa. Eu uso a poesia para lidar com sentimentos duros ou ambíguos, e isso às vezes é um enorme problema porque eu acabo acreditando que a tristeza é mais produtiva do que a felicidade. Mas não é verdade, a felicidade não é um sentimento simples, nenhum sentimento poderoso é simples, nenhuma situação humana é banal. E a poesia é capaz de ver profundidade em tudo. De estar a distância e nas entranhas das coisas a um só tempo. A gente desloca as palavras no(s) espaço(s) e a visão se expande. É difícil de definir e por isso mesmo é tão potente.

  • Poeta preferido (a) e por que?

Eu tenho alguns poetas preferidos. O meu pai é um deles. Mas também os clichês (que são clichês por uma razão): Sylvia Plath, Fernando Pessoa, Drummond, Elizabeth Bishop, e cummings, Robert Frost, Emily Dickinson, William Carlos Williams, Neruda… Dos contemporâneos eu sou completamente apaixonada por Afonso Henriques Neto, que escreveu o prefácio do meu livro e foi meu professor, e Francisco Mallmann. Posso citar livros específicos que eu adoro, razoavelmente recentes, como “O martelo”, da Adelaide Ivánova; “Mulher sob a influência de um algoritmo”, da Rita Isadora Pessoa, minha amiga da adolescência em Araruama; “Aos outros só atiro o meu corpo”, da Maria Isabel Iorio; e “Qualquer coisa finge de morto”, do Victor Lampert, também meu amigo (tenho muitos amigos poetas, somos um bando esquisito). Recentemente fiquei embriagada com o livro de uma argentina chamada Cecilia Pavón que o Leonardo Marona, outro poeta que eu amo ler, a pessoa com quem eu mais divido minhas ideias sobre poesia, personagem fundamental para mim, me deu. Ele disse: “Lê isto aqui”, eu comecei estranhando muito e de repente fiquei completamente apaixonada. Se chama “Discoteca selvagem” e é incrível.

  • Quais foram suas primeiras leituras?

Ah, eu lia muito quando criança. Eu era uma criança que não gostava de jogos em equipes, de esportes, uma menina muito medrosa, então eu lia. Lembro que uma das primeiras coisas que me impactaram foi “Terra dos homens”, que é um livro do Saint-Exupéry em que ele reconta as experiências dele como aviador. Em geral eu lia o que meu pai recomendava, e criança eu li “Robson Crusoé”, li Monteiro Lobato e lia muitos quadrinhos também. Eu lembro que eu cheguei a alugar um livro na biblioteca do colégio durante o recreio, ler, e devolver ao fim do mesmo recreio. Coisas estranhas assim. Eu lia muito mais por lazer do que leio hoje, certamente. Aqueles livros da Coleção Vagalume também. Depois, fiquei ligeiramente obcecada com “Alice no país das maravilhas”, que realmente é um livro extraordinário. Li e reli um milhão de vezes ao longo dos anos, escrevi sobre ele, enfim. Lewis Carroll foi uma das minhas primeiras paixões literárias. E, veja só, ele nasceu no mesmo dia que eu. Um ponto de virada aconteceu com 13 anos, quando eu resolvi ler “O nome da rosa”. Ali, virei uma leitora adulta.

Foto: Renata Duarte

Cresci ouvindo meu pai, Caú, declamar, romper a banalidade do cotidiano com um poema

  • Para quem está começando a se interessar por poesia o que recomendaria ler ou estudar?

Eu não sei, eu não me sinto uma poeta experiente a ponto de indicar caminhos para ninguém. Eu nem me sinto exatamente poeta. Eu acho que eu sou uma escritora que também escreve poesia. Escrever foi o único talento que eu recebi como instrumento para tentar compreender e desvendar o mundo, e eu só fui atrás disso porque era minha única boia. Sendo filha de um poeta nato, sinto que existe uma diferença entre ser poeta e escrever poesia. Eu escrevo poesia, mas não sou poeta (ainda). Então, não sei se eu indicaria leituras muito teóricas para começar. Alguns caminhos se apresentam naturalmente. Um recurso que me ajudou muito é ler poesia com amigos, declamar mesmo, tentar entender a poesia como sonoridade. Isso é importante. No meu caso, é um resgaste e não uma descoberta, porque eu cresci ouvindo meu pai declamar, romper a banalidade do cotidiano com um poema. Cresci ouvindo a musicalidade, o ritmo das palavras, da mesma forma como algumas famílias musicais passam noções de melodia adiante quase que sem notar. A minha não era uma família musical, meu gosto musical eu formei quase que todo sozinha e mais velha. Mas eu tive o privilégio de crescer sabendo ouvir as palavras. É um privilégio e tanto.

  • E depois, como buscar recursos e meios para a publicação de um livro?

Concursos, prêmios, publicar em coletâneas, em revistas digitais, tudo isso ajuda a amadurecer o caminho de uma publicação solo. Eu não sou a pessoa mais indicada para ajudar porque eu levei anos e anos para sentir que eu poderia publicar um livro, e parte disso foi a dificuldade de organizar meus poemas numa unidade, pensar quais deles compunham um livro de fato. Eu publiquei através de uma chamada aberta da editora Urutau, e sei que há chamadas abertas de diversas editoras. Em geral têm-se feito muito o esquema de criar benfeitorias e crowdfundings para viabilizar um livro, e há autores que optaram por publicar de maneira independente, muitas vezes apenas digitalmente. Eu tendo a achar melhor confiar a uma editora especializada em poesia. Primeiro porque a conversa com os editores ajuda a (re)pensar aspectos do livro, e depois porque nada ainda supera a sensação de ver seu trabalho fisicamente no espaço de numa livraria.

Araruama me traz o incômodo da familiaridade. Não é um lugar simples para mim, e por isso mesmo me inspira muito

Maria Caú
  • E a relação da sua poesia com a cidade Araruama? Ela te inspirou de alguma forma?

Tem uma estrofe do Alberto Caeiro, o heterônimo pastoril de Fernando Pessoa, muito repetida, que sempre me vêm à cabeça quando eu penso em Araruama: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Araruama me traz o incômodo da familiaridade. Não é um lugar simples para mim, e por isso mesmo me inspira muito. Alguns dos últimos poemas a entrarem no meu livro, “Dar corpo ao naufrágio”, foram escritos em Araruama, são cenas que ocorreram em Araruama. A minha vida poética está para sempre ligada à cidade, mesmo porque praticamente todas as lembranças que eu tenho com o meu pai se passam em Araruama. O mar que vem sempre como imagem nos meus poemas (logo os meus poemas, eu, uma pessoa que detesta praia e sol) é o mar de Praia Seca, um mar lindo, aberto e muito assustador. Eu sou do cinema, e tem um filme argentino que eu adoro, que se chama O cidadão ilustre, e é sobre um escritor que deixa seu pequeno povoado no interior da Argentina, vai morar na Espanha, ganha o prêmio Nobel, mas nunca consegue escrever histórias que não se passem nesse vilarejo que ele abandonou. De alguma forma, somos todos assim. Os anos formadores marcam a gente de uma maneira que nenhum outro período consegue. Então, Araruama, nem maior nem mais bela que as outras aldeias, é maior e mais bela que todas elas para mim.

@mariaccau

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