Do silêncio à resistência: a trajetória das mulheres no futebol, entre preconceito, política e paixão

Muito antes da bola rolar nos gramados brasileiros pelas mulheres, a história já vinha sendo escrita em outros cantos do mundo, com coragem, suor e, sobretudo, amor pelo futebol

Em 1885, na Inglaterra, foi registrada a primeira partida oficial de mulheres. Mas os registros mais antigos mostram algo ainda mais curioso: diversas mulheres já jogavam bola escondidas, contrariando a sociedade, apenas para sentir a alegria de chutar, driblar, vencer. Era futebol, sim. Mas, acima de tudo, era resistência.

Um marco na história foi a fundação do primeiro time feminino inglês, o British Ladies Football Club, criado por Nettie Honeyball, uma mulher muito à frente de seu tempo (em pleno auge do conservadorismo vitoriano) , a equipe de Nattie foi presidida e financiada também por uma mulher, e uma mulher super influente na época, Lady Florence Dixie, uma aristocrata escocesa que era engajada nas lutas feministas. Em pleno século 19, Honeyball, desafiou normas sociais e fez do esporte uma forma de resistência. O futebol feminino, nesse contexto, era além de lazer, era um ato político.

Durante a Primeira Guerra Mundial, com os homens nas guerras, as mulheres assumiram não apenas fábricas e serviços, mas também os campos de futebol. O esporte se tornou uma forma de entretenimento e liberdade entre elas. Porém, ainda assim, a volta dos soldados trouxe junto o velho viés de preconceito e a repressão ao futebol jogado por elas.

Enquanto isso, no Brasil, o futebol já era praticado no final do século XIX, mas obviamente em ambientes improváveis. Nas arenas de circo, partidas de futebol faziam parte do espetáculo, muitas vezes como sátira. Quando mulheres se “atreviam” a jogar, enfrentavam todo tipo de humilhação, eram chamadas de grosseiras e até “fedidas”, como apontam os relatos da época. A crítica era ainda mais dura porque, em geral, essas mulheres vinham das classes bem populares, nas quais eram marginalizadas.

Em 1941, o governo de Getúlio Vargas decretou a proibição da prática de futebol por mulheres. A “desculpinha“? A atividade não seria compatível com a “natureza feminina”. O decreto incluía outros esportes considerados “inadequados”, e assim se oficializou a exclusão das mulheres de vez dos gramados. A repressão continuou durante a ditadura militar, tornando ainda mais difícil a prática do esporte, que passou a existir de forma quase clandestina.

Somente nos anos 1970 a proibição foi revogada. No entanto, a revogação não significou quase nada, tendo em vista a falta de apoio ou incentivo ao desenvolvimento. A modalidade só foi oficialmente regulamentada em 1983, ainda assim enfrentando resistência e pouquíssima estrutura. Em 1988, a FIFA organizou na China o Women’s Invitational Tournament, um torneio teste, feito para uma futura Copa do Mundo, que mesmo diante todo esse cenário, estava por vir. A seleção brasileira foi composta por jogadoras dos clubes Radar (RJ) e Juventus (SP). As condições eram precárias, afinal os uniformes eram sobras do masculino. Mas ali estava plantada a semente da profissionalização.

A primeira Copa do Mundo feminina foi realizada em 1991. A estreia olímpica do Brasil veio em 1996, seguida pela primeira medalha olímpica do Brasil em 1999. Mas foi em 2003 que uma “nova era” começou, o surgimento de uma lenda no futebol. Marta, que estreou pela seleção naquele ano e foi campeã do Pan-Americano em Santo Domingo, ela elevou o futebol feminino a um outro patamar.

Junto com Formiga, Pretinha e Cristiane, Marta compôs a geração mais vitoriosa do futebol feminino nacional. Mesmo com baixos investimentos, o talento e a força de vontade das jogadoras mantiveram viva uma esperança de igualdade. Marta tornou-se a maior artilheira de Copas do Mundo, entre homens e mulheres, e conquistou seis prêmios de Melhor do Mundo da FIFA, sendo revolucionária no futebol.

Um divisor de águas veio em 2019, quando a CBF, atendendo a diretrizes da FIFA, passou a exigir que todos os clubes da Série A mantivessem um time feminino. A medida impulsionou investimentos e deu mais visibilidade ao esporte. Ainda assim, os desafios persistem, afinal a diferença de estrutura, salários e cobertura midiática reflete o machismo estrutural ainda presente na sociedade. Um belo exemplo da questão midiática, são as transmissões e horários dos jogos, atualmente a final do Brasileirão sub-20 feminino será em uma Segunda-Feira às nove horas da manhã, um horário e dia onde a maioria das pessoas estão trabalhando, dificultando o apoio tanto presencial quanto em audiência.

Se destoando da grande dificuldade presente, temos clubes como o Corinthians, que têm mostrado que é possível transformar esse cenário. Com jogadoras como Duda Sampaio, Tamires e outras estrelas, o time se tornou referência no futebol feminino sul-americano, vencendo campeonatos e formando ídolos para a nova geração que está vindo, como a Maria, que aos nove anos afirmar querer ser a “nova Marta“.

“Crianças tendo mulheres como referência é um fator determinante para uma sociedade melhor, ver mulheres esportistas, não só mulheres mães, irmãs e esposas, isso pode auxiliar na quebra de preconceitos. Além disso, a referência é essencial pra uma pessoa se desenvolver, ter em quem se inspirar muda o jogo.” Afirmou Duany, torcedora e incentivadora do esporte.

Hoje, a Europa lidera a profissionalização do futebol feminino, com clubes como Barcelona e Arsenal investindo pesado na modalidade, e fazendo história dentro e fora do campo, com influência até mesmo nas passarelas. No Brasil, o caminho ainda é cheio de obstáculos, mas não sem conquistas. O futebol feminino tem quebrado diversos tabus sociais, culturais e políticos. E mesmo que os passos ainda sejam curtos e cada vez mais numerosos.

O impacto do futebol feminino tem ido muito além das quatro linhas. O crescimento da modalidade tem influenciado diversas tendências na moda, com uniformes pensados para alta performance e estilo, quebrando padrões antigos e transformando camisas de jogo em peças de desejo no dia a dia. Um exemplo recente disso foi o West Ham, time de futebol Inglês que fez uma parceria com a empresa Modibodi, para a confecção de shorts especialmente pensados para oferecer mais conforto e segurança durante o período menstrual.

A presença feminina também se fortaleceu no extracampo, cada vez mais mulheres ocupam espaço no jornalismo esportivo, narrando, comentando e analisando partidas com propriedade e local de fala, ajudando a desconstruir estereótipos que por décadas dominaram o esporte. Hoje há um leque de referencias de mulheres no jornalismo esportivo, como Mariana Spinelli (GE TV) e Clara Albuquerque (TNT), que tem inspirado outras meninas a seguir a mesma carreira. Essas presenças no meio esportivo mudam também o pensamento do publico em relação ao gênero, tendo em vista que por muitos anos, as mulheres que trabalhavam no esporte eram vistas, superficialmente, como “masculinizadas”, não podendo abordar assuntos vistos antes como “coisa de mulher”, como exemplo cultura pop e moda.

Mariana Spinelli, GE TV (marianaspinelli)

Além disso, as redes sociais abriram espaço para uma nova geração de criadoras de conteúdo esportivo, que aproximam torcedores, compartilham bastidores e claro, dão visibilidade a campeonatos de base e cobrem o futebol feminino com paixão. Essa presença multiplica vozes, e com certeza inspira novas meninas a sonharem alto, não apenas como jogadora, mas também como jornalistas, fotógrafas, produtoras do esporte. Para Nicolle Beatrice, criadora de conteúdo esportivo, cada passo conquistado num universo ainda tão masculino, é uma vitória de todas: “Ganhar espaço num meio que ainda é tão masculino é uma sensação única. É como se cada conquista fosse um grito de:

“A gente tá aqui e merece estar’. Cada mensagem de reconhecimento, cada pessoa que acompanha meu conteúdo, é um lembrete de que vale a pena não desistir, mesmo quando duvidam da gente. No fundo, não é só sobre mim, é sobre abrir caminho pra outras mulheres que também sonham em ocupar esse espaço no esporte.”

Nicolle Beatrice (@nicollebeatric)

Já para Beatriz Andrade, jornalista e setorista do futebol feminino, o futuro do esporte no meio feminino é motivo de esperança. Ela acredita que a modalidade ainda tem muito a crescer, mas que os próximos passos podem fazer a diferença:

“Espero campeonatos mais organizados e bem transmitidos, com melhor divulgação e estrutura, tanto para as meninas quanto para a torcida acompanhar.”

O que começou como resistência, hoje é voz e liberdade. Talvez seja justamente isso que torne o futebol feminino tão potente, ele não se resume ao que acontece nos 90 minutos de jogo, ele transforma vidas, inspira sonhos e reescreve a história de mulheres que um dia acreditaram que aquele não era o lugar delas.

Por Duda Araujo, estagiária de Jornalismo, com supervisão de Fernanda Santana

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