“O poderoso Chefão” (1972) é um filme que conta a primeira parte da saga da famiglia Corleone, liderada pelo respeitado Don Vito Corleone (Marlon Brando), que é uma família mafiosa que controla os negócios ilegais na Nova York dos anos 1940 e 1950.
A obra é marcada pela transformação do personagem de Michael Corleone (Al Pacino) filho mais novo de Don Vito, que inicialmente evita se envolver no “negócio”, mas, por força das circunstâncias, acaba mudando de ideia e entra de cabeça nas atividades ilegais da família.
Transformação é também a marca de 2022 para o mundo do futebol: estamos começando a assistir a um longo filme que expõe a transformação de inúmeras associações desportivas em sociedades anônimas, em decorrência da recente Lei nº 14.193/21.
Tanto quanto o estilo de vida dos Corleone, as perspectivas oferecidas pela lei são extremamente perigosas para os clubes que resolvam mergulhar nesse mundo de aguas ainda muito turvas.
A começar pela possibilidade de que o controle da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) seja transferido para terceiros. Difícil imaginar ver que agremiações centenárias e com grandes torcidas possam ser geridas por uma única pessoa ou fundo absolutamente alheio às suas tradições.
Tâo chocante quanto as cenas de violência do filme, é ver gente defender que isso é a salvação do futebol. É bom lembrar de Don Corleone, quando disse que “aquele que depende de outras pessoas depende de sobras”. Alguém acha realmente que um terceiro que não possui qualquer vínculo com o clube vai lutar mais por ele ou por seus próprios interesses?
Será que o controlador conduzirá a SAF na busca de títulos ou de seus lucros? Quem garante que ele agirá com competência e honestidade? Quem da associação poderá impedir que desmandos aconteçam? E se o controlador for torcedor de um clube rival, como o leitor avalia que ele irá se comportar?
Reza a Lei nº9615 que a organização desportiva brasileira integra o patrimônio cultural de nosso país, o que exige do Estado a adoção de medidas de preservação, a fim de que uma parte de nossa cultura não se perca ao longo do tempo.
A Lei da SAF, contudo, ignorou completamente essa previsão. Não criou regras que protegessem os clubes que se transformarem em Sociedades anônimas, a fim de impedir a sua extinção. Pelo contrário, permite abertamente que a SAF tenha aberta a sua falência em caso de fracasso econômico. Caso isso aconteça, como ficarão os seus torcedores?
Diferentemente de um supermercado ou loja de departamentos, em que sua eventual extinção não nos trará maiores problemas em fazer compras numa concorrente, não parece ser crível que, em caso de falência, o apaixonado por um time irá se conformar simplesmente em torcer para outra agremiação…
Clubes de futebol possuem valores imateriais que nenhum cheque, por mais poderoso que seja, deveria ser capaz de adquirir. O dinheiro não pode comprar tudo. Ou pelo menos não deveria.
Até mesmo na máfia existem valores que não tem preço. A família Corleone, por exemplo, como todas as grandes famílias mafiosas, sustentou-se em rígidos princípios éticos e valorizava muito os laços familiares na estruturação de seus negócios.
Sinto cheiro de laranja podre no final dessa estrada, prenunciando que tudo isso não vai acabar bem. Aliás, em “O Poderoso Chefão”, a presença de laranjas numa cena de qualquer dos três filmes da trilogia significava que ou alguém iria morrer ou algo de ruim aconteceria com essa pessoa em breve.
Laranja é algo que não deverá faltar na SAF, pois, ao permitir que os acionistas fiquem ocultos, a lei incentiva a presença no futebol brasileiro do famoso “laranja”, que é aquele que se dispõe a atuar de forma ostensiva, encobrindo o verdadeiro titular do negócio.
É inacreditável que a Lei da SAF permita isso, contrariando inúmeros preceitos da própria Lei Pelé que preconizam a transparência, moralidade e princípios de governança corporativa no mundo do futebol.
Ela também vai na contramão da história. Basta ver que a Comissão Europeia, em recente relatório, incluiu o futebol profissional na lista de setores mais suscetíveis a atividades de lavagem de dinheiro no âmbito da União Europeia.
Reza o relatório que “A organização complexa do futebol profissional e a sua falta de transparência criaram um terreno fértil para o uso de recursos ilegais. Quantias avultadas de dinheiro estão a ser investidas neste desporto sem aparente retorno financeiro explicável“.
Para estancar esse processo, a Comissão recomendou aos Estados-membros que “Devem considerar quais os atores que devem ser abrangidos pela obrigação de comunicar transações suspeitas e que requisitos devem ser aplicados ao registo e controlo da origem dos titulares de contas e dos beneficiários do dinheiro.“
Por conta disso, inúmeros países europeus adaptaram sua legislação para impedir que investidores permaneçam ocultos, a fim de combater a lavagem de dinheiro. Nosso lindo Brasil, porém, caminha em sentido diametralmente oposto.
Talvez seja para atrair boa parte da máfia internacional para um país que não parece satisfeito com a quantidade de criminosos que possui, que são tantos por aí a ponto de podermos dar e vender.
Como previsto pela direção, Marlon Brando causou problemas no set e não decorou a maioria de suas falas do filme. Para resolver o problema, ele improvisou, espalhando cartões por todo o estúdio com o texto que deveria interpretar.
Não é preciso, entretanto, estudar muito para saber de cor e salteado que o improviso na normatização da SAF no Brasil ainda trará dores de cabeça a boa parte dos envolvidos nesse negócio.
Porém, diferentemente de “O Poderoso Chefão”, não devem morrer muitos mafiosos.
Mas vários clubes de tradição do nosso futebol.
Martinho Neves Miranda
Ex-Procurador do BNDES; Advogado; Procurador de carreira do Município do Rio de Janeiro; Árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem; Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem; Professor visitante da Universitè de LILLE da França; Mestre em Novos Direitos pela UNESA; Coordenador Acadêmico da Universidade Cândido Mendes/RJ; Professor de Direito Civil e de Direito Desportivo; Autor do livro “O Direito no Desporto” e de várias obras nas áreas de direito Constitucional, Civil e Administrativo e trabalhista; Integrou a Comissão de Estudos Jurídicos do Ministério do Esporte; Foi coordenador da Candidatura do Rio aos Jogos Pan-americanos de 2007 e consultor jurídico para os Jogos Olímpicos de 2016.